4 de julho de 2025

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Artistas recriam obras famosas com viés anticolonial e antirracista

Por MRNews

Usando lençóis como tela, o artista beninense Roméo Mivekannin recria obras consagradas mundialmente, principalmente das coleções do famoso Museu do Louvre, em Paris, com um novo olhar e novos personagens. Nas releituras, as pessoas brancas que protagonizam as obras originais perdem espaço para autorretratos de Mivekannin, um homem negro.

A exposição O Avesso do Tempo, que entre dezembro de 2024 e junho de 2025, ocupou o Museu Louvre Lens – unidade localizada em Lens, cidade no norte da França, chega ao Brasil no Museu de Arte Moderna da Bahia, em Salvador, de agosto a novembro, como parte da Temporada França-Brasil.

>> Confira os destaques da programação da Temporada da França no Brasil

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Nas obras do artista, as substituições evidenciam questões como: Quem está pintando? Quem está sendo pintado? Quem está presente nas obras e quem está ausente nelas? Na releitura da Balsa da Medusa, de Théodore Géricault, de 1819, por exemplo, é ele que aparece ocupando alguns dos rostos daqueles que sobreviveram ao naufrágio Fragata de Medusa, no qual o quadro foi inspirado.

“Ele se insere para reescrever a história, para propor a sua narrativa. Ele também nos interpela para nos fazer entrar nessa história para, quem sabe, reescrever as nossas narrativas e questionar os sistemas de dominação atuais”, explica a gerente de atividades educacionais do museu, Evelyne Reboul, que acompanhou a Agência Brasil em visita guiada pela exposição no Louvre Lens.

 

Usando lençóis como tela, o artista beninense Roméo Mivekannin recria obras consagradas mundialmente FREDERIC IOVINO/Divulgação

Roméo Mivekannin nasceu em 1986, em Bouaké, na Costa do Marfim, mas vive e trabalha entre a França e o Benin. É formado em arquitetura e começou a pintar em 2019, influenciado pela exposição O corpo negro, de Géricault a Matisse, no Museu D’Orsay, em Paris. A exposição discutia a presença negra nas obras de arte.

Mivekannin é também descendente da realeza de Benin. O último rei independente de Daomé – que, quando colonizado pela França, passa a se chamar Benin – foi Behanzin, tataravô dele.   

O material escolhido para as obras também é simbólico, de acordo com Reboul. Pela cultura à qual pertence, lençóis não devem ser reutilizados. Ele usa justamente lençóis de brechós europeus, que passam por uma lavagem de ervas para purificação. É sobre eles que o artista redesenha a história. 

“Em certas obras, ele nos mostrou que costurou, dentro dos lençóis, cartas que ele escreveu para pedir às personagens autorização para ocupar os seus lugares”, conta. O pedido, segundo Reboul, faz parte de prática religiosa do vudu, religião que nasce no Benin. Além de praticá-la, Mivekannin a retrata em suas próprias obras.

Outra obra da exposição traz uma releitura do quadro Retrato de Madeleine, de Marie-Guillemine Benoist, de 1800. Ao invés de Madeleine, é ele quem aparece com um turbante na cabeça, olhando diretamente para quem observa a obra.

“Esse quadro se chamava Retrato de uma Mulher Negra. Durante muito tempo, foi uma obra sem identidade”, diz Reboul. O quadro original foi renomeado em 2019, quando a mulher foi reconhecida como Madeleine, que foi de Guadalupe para a França após a abolição da escravidão nos territórios franceses, em 1794. Ela trabalhou para a família de Bernoist.

O tataravô também é homenageado na exposição. O último rei independente de Daomé aparece com as esposas em uma fotografia. Mivekannin também se insere no retrato. Assim como se insere em outra fotografia, que mostra um grupo de mulheres negras e um homem branco colonizador junto com elas. Uma delas tem um olhar desafiador, mostrando descontentamento com a situação. É essa mulher que Mivekannin imita.

Brasil ilustrado

A exposição Brasil Ilustrado – Um legado pós-colonial de Jean-Baptiste Debret também impõe um desafio: olhar cuidadosamente para as imagens produzidas pelo pintor francês sobre o Brasil, entre 1816 e 1839, evidenciando as violências ali presentes e propondo ressignificações. A exposição, apresentada em Paris, na Casa da América Latina, chegará ao Museu do Ipiranga, em São Paulo, acompanhada de colóquio e publicação sobre a obra de Debret, também como parte da programação da Temporada França-Brasil.

Debret foi um pintor, desenhista e professor francês que integrou a Missão Artística Francesa (1817). O grupo fundou, no Rio de Janeiro, uma academia de Artes e Ofícios, mais tarde Academia Imperial de Belas Artes, onde lecionou. Quando voltou à França, publicou Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (1834-1839), com gravuras que havia mantido em segredo, não enviando ao país de origem. As imagens mostram o cotidiano do Rio de Janeiro, em uma sociedade escravocrata repleta de violências contra pessoas negras.

O livro chegou a ser censurado pela biblioteca imperial na França e foi esquecido, até ser publicado no Brasil em 1940. O problema, de acordo com o pesquisador especialista na obra de Jean-Baptiste Debret, Jacques Leenhardt, curador da exposição, é que o que era violência e chocou a sociedade francesa não teve o mesmo impacto no Brasil, que viu as cenas como corriqueiras. As gravuras foram amplamente divulgadas em livros didáticos e até mesmo em souvenires, em panos de prato e outros objetos.

“Por isso, eu coloquei na exposição uma seleção de imagens ligadas ao trabalho, porque o tempo todo ele está falando que quem trabalha no Brasil é o escravo. O português não trabalha. Aparece comendo doces, etc. Quem trabalha é o negro, é o escravo”, diz. 

Quando o livro é rejeitado na França, ele recebe um parecer: “Esta não é a realidade brasileira. Tem um desenho que mostra os negros escravizados que chegam ao Valongo [porto no Rio de Janeiro] muito magros e quase morrendo após a viagem. E o comentário que se faz, que hoje é inacreditável, é de que ‘o que Debret faz são esqueletos, ele não sabe desenhar`. Mas a realidade era exatamente aquela”, diz Leenhardt. 

 

 A obra Trabalho (2017), de Jaime Lauriano, reúne uma série de elementos que reforçam o racismo presente na sociedade Galeria Nara Roesler/Divulgação

A exposição reúne obras de 15 artistas brasileiros que dialogam ou mesmo recriam os desenhos de Debret. Uma delas, a obra Retrato da Mãe e transformações (2022), de Eustáquio Neves, utiliza imagens da própria mãe em uma série de negativos fotográficos nos quais vai, aos poucos, inserindo uma máscara de metal que era usada nas pessoas escravizadas, tapando a boca para que elas não pudessem se matar para fugir da situação de escravidão, comendo terra. Ao lado, o desenho de Debret no qual a máscara aparece. 

A obra Trabalho (2017), de Jaime Lauriano, reúne uma série de elementos que reforçam o racismo presente na sociedade, como avisos de “A entrada de serviço é pelos fundos” e uma lista de profissões muitas vezes ocupadas por pessoas negras sem que seja dada a elas alternativas, como empacotador, faxineira, empregada doméstica, garçom, gari, entre outras. Ele reúne também objetos que utilizam e normalizam os desenhos de Debret, como calendários e tapeçarias. 

Em Espera da reza pro bater do tambor (2024), Gê Viana recria a obra de Debret, dando protagonismo às pessoas negras e inserindo elementos atuais como uma aparelhagem de som. 

Temporada França-Brasil

A Temporada 2025 foi acordada em 2023, pelos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Emmanuel Macron. O objetivo é fortalecer a relação bilateral entre os dois países, principalmente por meio da cultura. No primeiro semestre deste ano, ocorreu a Temporada Brasil-França, ou seja, a programação brasileira em solo francês. Agora, no segundo semestre, é a vez da Temporada França-Brasil, elaborada pela França.

Os temas prioritários da Temporada são: a diversidade de sociedades e diálogo com África; democracia e Estado de direito; e, clima e transição ecológica. A programação, que ocorre de agosto a dezembro, será distribuída entre 15 cidades brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belém, Salvador, Recife, Fortaleza, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Campinas, São Luís, Teresina, João Pessoa e Macapá.

Entre os dias 17 e 24 de maio, a Agência Brasil esteve em Paris, a convite do Instituto Francês, vinculado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da França, responsável pela programação do segundo semestre, para conhecer um pouco da programação.

*A repórter viajou a Paris a convite do Instituto Francês.